sexta-feira, 28 de maio de 2010

Reflexões sobre a Copa de 2014: o urgente e o básico

Pós-doutora em Ciências Sociais e professora de Mestrado em Hospitalidade, Maria do Rosário propõe a discussão de aspectos como a relação entre visitantes e anfitriões e sustentabilidade durante a Copa 2014.

Recente artigo do arquiteto e urbanista Jorge Wilheim no Portal Vitruvius, intitulado Crise: o urgente e o básico, suscitou-nos a comparação das exigências da crise mundial no que se refere à necessidade de um replanejamento das atividades econômico-financeiras de todos os países que estão mais ou menos envolvidos com o enorme investimento que o País deverá fazer ao sediar uma Copa do Mundo de futebol.
De fato, considerando-se apenas o “urgente e o básico”, o País deverá se planejar para os enormes investimentos que pelo menos as cidades-sedes, que vão do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, deverão enfrentar e aproveitar as oportunidades que certamente se criarão com a exposição na mídia internacional. Acrescente-se agora o fato de o Rio de Janeiro sediar as Olimpíadas de 2016. É possível pensar num resultado positivo para o turismo no País e para os habitantes?


Alguns aspectos podem ser considerados nesse processo: em primeiro lugar, se podemos chamar de “turismo esportivo” esse movimento que atrairá não apenas equipes esportivas de todas as nacionalidades, mas o público em geral, proveniente de todas as partes do mundo, como acontecerá na Copa de 2010 na África do Sul, ele não envolve, então, aspectos econômicos apenas, mas de infraestrutura, de decisões políticas nacionais e regionais, de legislação e de cidadania, entre outros. Nesse caso é possível falar de uma visitação turística sustentável? Como se dará a relação entre visitantes e anfitriões?

É preciso lembrar de toda a experiência de recepção e acolhimento de imigrantes estrangeiros que o Brasil conheceu desde meados do século XIX e primeiras décadas do século XX, que confere ao País e, sobretudo, aos Estados do sul, especialmente Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, com destaque para São Paulo, um caráter multicultural e multinacional de país imigrantista. É preciso considerar o enorme aporte cultural e a contribuição inestimável em todos os terrenos, dos negros desde a Colônia e sua participação na constituição da identidade brasileira desde sempre e nos esportes de uma maneira geral.

Nesse sentido é que não podemos nos esquecer de que o Brasil foi tradicionalmente um país receptor de imigrantes e que desde meados do século XIX ficou conhecido pela hospitalidade oferecida ao estrangeiro, ao imigrante e que, mais tarde, já a partir da década de 1920, começou a conhecer um movimento interno de população que saía de seus Estados natais em direção aos Estados que fornecessem melhores condições de vida e de trabalho. Esse processo nem sempre se caracterizou pelo acolhimento sem reservas, mas é reconhecido por todos que muito se deve ao trabalho dos imigrantes e dos migrantes internos em função de quem se construiu o mito do país hospitaleiro.

Muito desse traço se observa na gastronomia, na arquitetura e em todos os registros materiais e imateriais da imigração em cidades como São Paulo. O próprio futebol registra histórias que começaram com algumas comunidades de imigrantes como o Palestra Itália, a Portuguesa, entre outros, e atualmente recruta seus integrantes entre todas as regiões, raças e classes sociais brasileiras. A diversidade cultural do Brasil assim tem construído, ao longo da história, bases sólidas para o acolhimento da diversidade, e pode consistir num fator positivo para a relação com os visitantes. É preciso que os atuais visitantes encontrem possibilidades de se reconhecerem em parte no país, e se identificarem com seus conterrâneos agora assimilados à cultura e à sociedade nacionais e se sintam “em casa”.

O Brasil poderá aproveitar a oportunidade da exposição internacional para ultrapassar o “urgente e o básico” e acrescentar algo à tradicional imagem sol e praia. Evidenciar seu potencial multicultural e acolhedor, reforçar ou mesmo criar sua infraestrutura urbana para melhor mobilidade dos hóspedes, como transportes urbanos, metrô, enfim, uma boa rede pública de transportes, alargamento e modernização de avenidas, reforma das estruturas aeroportuárias, ampliação da rede hoteleira, esportiva e da rede básica de saneamento etc., de modo a transferir aos habitantes, posteriormente, alguns dos benefícios advindos dessa oportunidade.

Outro aspecto que deve ser devidamente dimensionado é a possibilidade de se pensar numa “visitação turística sustentável”, que leve em conta a atratividade das belezas naturais brasileiras, mas que ultrapasse os estereótipos (sol, mulheres e praia), e que recoloque as necessidades de preservação, sobretudo quando se pensa no planejamento das obras que serão necessárias à recepção dos visitantes e das equipes. Ótima oportunidade para mostrar um Brasil que pode ser “gigante pela própria natureza” e que, embora “deitado em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo”, possa evidenciar a verdadeira face hospitaleira da população brasileira e que sobretudo traga a ela os maiores benefícios, ultrapassando de muito o “urgente e o básico”.

Corinthiana, entre suas lembranças futebolísticas recorda sua primeira vez em um estádio, quando assistiu ao jogo em que o Ferroviária de Araraquara ganhou do Santos, com Pelé em campo!

Maria do Rosário Rolfsen Salles é graduada em Ciências Sociais, doutora em Sociologia pela UNESP e pós-doutora pelas instituições francesas École des Hautes Études en Sciences Sociales e Centre National de la Recherche Scientifique. Atualmente é professora do Programa de Mestrado em Hospitalidade da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, e participa do Grupo de Pesquisa do CNPQ Socioantropologia da Hospitalidade.

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